Brasília, 3 de maio de 2024.
Dificuldades estruturais, como o saneamento básico, seguem entre os principais desafios do país. Fundamental para buscar soluções para estes problemas, a Engenharia precisa integrar-se com outras áreas sociais, por meio de políticas públicas voltadas a garantir o acesso à saúde, à educação e à habitação, por exemplo. Essa é opinião de especialistas da área. Uma articulação que envolve ainda aspectos sociais como a economia e a política, de forma mais evidente, e que perpassa também até mesmo a arte, de forma mais indireta.
Há 45 anos, ao ritmo da canção homônima de Chico Buarque, a caravana Roliday, do filme “Bye Bye, Brasil”, de Cacá Diegues, percorreu um cenário de péssimas estradas, ausência de saneamento, desemprego e analfabetismo que continuam desafios. Já o cineasta Jorge Furtado, focou nas dificuldades do saneamento básico no premiado documentário “Ilha das Flores” (1989) e na comédia “Saneamento Básico, o Filme” (2007). Ainda nessa área, o uso de lixo na arte de Vik Muniz, a ironia das marchinhas “Tomara que Chova" (Romeu Gentil/Paquito) e "Vagalume" (Vitor Simon/Fernando Martins), o samba "Lata D'água" (Luiz Antonio/Jota Jr) ou o ska "Alagados", dos Paralamas do Sucesso, por exemplo, contribuíram para dar visibilidade a essas realidades desalentadoras.
A realidade do saneamento, claro, está longe de ser agradável como essas representações. Drenagem e manejo de águas pluviais. Tratamento e abastecimento de água. Coleta e tratamento de esgoto. Limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos urbanos. Embora esses serviços que caracterizam o saneamento básico sejam usufruídos diariamente por milhões de brasileiros, parte da nossa população, historicamente esquecida pelos investimentos estruturais. Nesta matéria, buscamos descortinar alguns aspectos desse drama social.
Com o mesmo intuito, o tema foi abordado recentemente pela reportagem “Gigante pela Própria Imundice”, dos jornalistas Isadora Teixeira e Igo Estrela, do site Metrópoles. Um título que remete à incapacidade de instituições públicas e privadas resolverem essas questões elementares para ampliar nossos Índices de Desenvolvimento Humano – IDH (saúde, educação e renda), além de outros indicadores sociais, como a taxa de mortalidade infantil, a expectativa de vida ao nascer, as taxas de desemprego e pobreza e ainda o acesso a serviços básicos, que incluem o saneamento básico, o lado da saúde e da educação. Segundo a matéria, cerca de 23 milhões teriam suas vidas prejudicadas pelo não acesso a condições sanitárias mínimas.
Para o presidente do Confea, eng. Vinicius Marchese, o cenário apontado pela reportagem precisa ser definitivamente modificado. “Todos nós, profissionais do Sistema Confea/Crea, precisamos ter o compromisso de buscar maneiras para mudar essa realidade. Estamos diante de um cenário que precisa ser corrigido com planejamento e políticas de Estado, além da participação da iniciativa privada, prevista pelo novo Marco do Saneamento. É uma responsabilidade ética de todos os profissionais buscar assumir uma atitude de cidadania para melhorar as condições de vida dessas pessoas”, convoca. Ele também destaca a importância das diretrizes de fiscalização, definidas pelo Confea para este ano, em aterros de resíduos e lixões (confira abaixo). “Temos boas expectativas para apresentar à sociedade a contribuição do Sistema para o debate permanente nessa área, também dentro da nossa preocupação com os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), da ONU”.
Fiscalização
Para contribuir com essa demanda ainda urgente em nossa sociedade, o Confea incluiu os aterros de resíduos e lixões entre as metas prioritárias nacionais de fiscalização em 2023. Segundo esclarece a nota técnica resultante dos encontros de fiscalização que determinaram as metas, no ano passado, “mais da metade dos municípios brasileiros destinam seus resíduos de forma inadequada em aterros controlados/lixões, que compreendem local com elevado potencial de poluição ambiental e impactos negativos à saúde”. Entre as sugestões definidas pela nota técnica está a necessidade de aumento dos locais de destinação final ambientalmente adequados e o encerramento das atividades dos aterros sanitários ou lixões controlados.
A implementação da Política Nacional de Resíduos Sólidos, instituída pela Lei nº 12.305/2010, utiliza o Plano Nacional de Resíduos Sólidos, definido pelo Decreto nº 11.043/2022, de forma alinhada à Lei nº 14.026/2020, que define prazos para encerramento de lixões e aterros controlados. Considerando que a Política previa um horizonte de atuação de 20 anos para melhorar a gestão de resíduos sólidos no país, os 12 anos de distanciamento entre sua publicação e o Plano demonstram a pouca priorização institucional do tema da gestão ambiental nos municípios brasileiros.
“Juntamente com os efluentes (domésticos e industriais), os resíduos sólidos estão diretamente relacionados à qualidade ambiental de uma cidade e compreende um conjunto de procedimentos técnicos e operacionais necessários desde a avaliação dos resíduos gerados em uma cidade, planejamento para redução e destinação correta de tais resíduos e efluentes gerados”, diz ainda a nota técnica do Confea, destacando a necessidade técnico e operacional da participação direta dos profissionais na elaboração dos demais planos de gerenciamentos de resíduos, “bem como na fiscalização de obras e serviços necessários à atividade de disposição dos resíduos sólidos urbanos”.
Novo Marco
Para o Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento – Ondas, entidade que atua de forma autônoma e conjunta com instituições acadêmicas e movimentos sindicais e sociais de todo o país, o modelo do Novo Marco do Saneamento (Lei nº 14.026/2020) deve ser revisto. Embora preveja a “universalização” do saneamento até 2033, essa universalização, na verdade, estabelece 99% da população com acesso à água potável disponível e 90% com disponibilidade de coleta de esgotos e tratamento, até 31 de dezembro de 2033.
“Para dez por cento da população que não estão atendidos a situação é péssima. Mas também pode ser péssima para todas as pessoas. Supondo-se que na região metropolitana de São Paulo o tratamento dos esgotos seja feito com 90% de eficiência e atenda 90% dos moradores, ainda assim teremos esgotos lançados sem tratamento nos rios correspondente a quatro milhões de pessoas – ou seja, o Rio Tietê, que tem baixa vazão nos meses secos, vai continuar seriamente poluído. Na região norte, até mesmo os índices previstos na lei não são factíveis em nove anos. Universalização não é ter cano de água na rua. É ter água sempre e conseguir pagar”, aponta o conselheiro do Ondas eng. e professor Ricardo Moretti, em entrevista ao Confea.
As metas de atendimento com redes, acrescenta, precisam contemplar também a necessidade de acessibilidade financeira, pois parte significativa da população terá dificuldades para pagar a conta cheia dos serviços de água e esgotos. “É necessário prever ainda a garantia de qualidade do abastecimento pois é grave o problema de intermitência do abastecimento em especial nas áreas mais pobres. Deve incluir ainda a redução de perdas e de melhoria dos processos de tratamento, conforme o Artigo 11-B da Lei 14.026/2020”, o comenta Moretti.
Com números do Censo Demográfico de 2022, Moretti descreve que atualmente 75,7% da população dispõem de esgotamento adequado e 96,9% recebem abastecimento de água adequado. “Apesar de ainda longe do ideal, os investimentos do Estado brasileiro possibilitaram esse avanço, em relação ao Censo de 2010. Os recursos, no entanto, continuam privilegiando algumas regiões, em detrimento da área rural e dos pequenos municípios, em especial do Norte e do Nordeste, que continuam com os piores índices de cobertura”.
É preciso também fazer um recorte racial: 68,6% de pretos e pardos estão sem acesso adequado a esgoto para 29,5% da população branca. “Um aspecto destacado pelo Censo 2022 é a disparidade entre grupos raciais. Entre os pretos e pardos, que compõem pouco mais da metade da população brasileira, o percentual de pessoas sem acesso adequado ao esgoto chega a alarmantes 69%. Enquanto isso, entre os brancos, esse número é de 30%. Os dados ainda apontam que a falta de um abastecimento adequado de água atingia 6,2 milhões de brasileiros em 2022. Novamente, a disparidade é evidente, com os pretos e pardos representando 72% da população sem acesso adequado à água, em comparação com os brancos, que correspondem a 24%”, descrevem Ricardo Moretti e ainda os engenheiros Leo Heller e Marcos Helano Fernandes Montenegro, em artigo publicado pelo Ondas.
Segundo o artigo “Neoliberalização dos Serviços Públicos: o papel do BNDES no Saneamento Básico pós-2000”, publicado por D. Werner e C. Hirt, em 2021, na Revista Brasileira de Gestão Urbana, o banco de fomento foi responsável pela liberação de R$ 11,9 bilhões para 465 ações de abastecimento de água e esgotamento sanitário entre 2002 e 2018, dos quais apenas a Copasa (MG) não representava empresas públicas. O texto foi citado em fevereiro deste ano no artigo “Saneamento: que papel terá o BNDES?”, de Ana Lucia Britto e Léo Heller, para o site Outras Palavras. “Nesse período, verifica-se uma prevalência de contratos com CESBs (NR: 51,7% dos contratos, enquanto as empresas privadas ficaram com 33,6%, governos municipais 11,7% e governos estaduais 3,1%), tanto em termos de número como de valor”, dizem a geógrafa Ana Lucia Britto e o engenheiro Léo Heller, também integrantes do Ondas. Atualizando os números entre 2019 e 2022, o investimento superou os R$ 20, 6 bilhões em apenas 10 contratos, apenas dois deles com entes públicos (ambos com a Sanepar).
A previsão da nova lei de que estados definam estruturas regionais de saneamento como base para os blocos de concessão e ainda que municípios ofereçam diretamente suas concessões, retirando atribuições das concessionárias públicas estaduais, também é objeto de ressalvas. Em grande parte, por considerar que estados e municípios estariam mais preocupados em receber os recursos diretamente, do que propriamente em promover investimentos no setor. “As concessões onerosas são um modelo em que prevalece o maior valor de outorga, com parte significativa dos recursos oriundos de empréstimos do BNDES a empresas privadas. Estes recursos entram diretamente nos cofres públicos dos estados e municípios, sem o compromisso de serem investidos em saneamento. Com esse aporte de recursos para a outorga onerosa é inevitável que as empresas pressionem pelo aumento das tarifas. Estamos vendo o que isso está resultando no Rio de Janeiro, serviços deficitários que comprometem a saúde da população”, afirma Ricardo Moretti.
O Novo Marco Legal do Saneamento Básico vem sendo acompanhado também por entidades como o Instituto Trata Brasil. Visto como uma forma de impactar na vida de “100 milhões de brasileiros que sofrem com a ausência de coleta e tratamento de esgoto”, o novo Marco Legal é acompanhado pelo documento “Avanços do Novo Marco Legal do Saneamento Básico no Brasil 2023”, publicado pela entidade. Recentemente, o governo federal restabeleceu, via decreto, o papel do ministério das Cidades na condução das diretrizes da área. Assim, caberá à Secretaria Nacional de Saneamento definir as linhas de atuação a serem executadas por meio da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico – ANA.
O país atualmente também discute a privatização da Companhia de Saneamento Básico do Estado e São Paulo (Sabesp), empresa de economia mista responsável pela área há 50 anos. “A Sabesp, sozinha, até o ano de 2022, investia 50% de tudo que era investido no setor de saneamento no Brasil, computando empresas públicas e privadas”, afirmou o eng. José Everaldo Vanzo, ex-diretor de operações da empresa, em entrevista à Agência Brasil. A proposta de privatização da Sabesp é criticada por entidades como o Ondas, que vislumbram o aumento de tarifas e a maior dificuldade para ampliar o atendimento das populações carentes e promover a efetiva universalização dos serviços.
Indicadores, casos e visões
Com outra sistemática de análise dos números do Censo 2022. o Sistema Nacional de Informação sobre Saneamento (SNIS), do ministério das Cidades, o país contava com 84,9% da população com atendimento à rede de água; 56% com atendimento à rede de esgoto e 90,4% com cobertura de coleta domiciliar de resíduos sólidos, este em um número decrescente em relação a 2010 (93,4%). Queda também na coleta seletiva (38,6% para 32,2%). Já o tratamento de esgoto cresceu de 37,8% para 52,2% no mesmo período. Entre avanços e retrocessos – reconhecidos inclusive pela Organização das Nações Unidas que incluiu o Brasil, no ano passado, entre os três países que avançaram de maneira significativa nos serviços de saneamento, em particular no tratamento de esgotos, ao lado de Gana e Cingapura – os números demonstram que o país ainda possui muitos desafios para universalizar o saneamento.
O quadro desalentador vivenciado por grande parte da população brasileira está relacionado apenas de forma mais evidente com a ausência de investimentos sistemáticos em infraestrutura urbana e rural. Ele abrange ainda outros aspectos, como os investimentos em saúde pública e em educação ambiental, segundo a professora Conceição Alves, especialista em Recursos Hídricos do Departamento de Engenharia Civil e Ambiental da UnB.
Com um olhar mais contextual, ela aponta a importância de atentar para os processos de ocupação territorial que marcam a história do país. “Devido às deficiências habitacionais, as pessoas são forçadas a primeiro ocupar, depois vão procurar alguma estrutura”, diz, considerando a necessidade de aprofundar a integração de políticas públicas. “Essa integração precisa acontecer fortemente”, acrescenta, chamando atenção especialmente para a educação ambiental. “Muito da solução desses problemas exige a educação das famílias para a salubridade dentro de casa”, considera.
Para a professora Conceição Alves, as abordagens para as soluções desses problemas devem, portanto, superar a expectativa do aproveitamento do conhecimento tecnológico há muito desenvolvido no país. “Não é porque a gente não tenha engenharia suficiente para resolvê-los, pelo contrário, nossas tecnologias são partes da solução de problemas que nada têm a ver com a engenharia como causa. Temos tecnologias, sabemos como resolver. Agora, a gente não tem a política pública, o dinheiro para executar. Precisamos pensar na integração com a saúde pública e a atitude ambiental, por exemplo. O lixo acumulado após uma noite de uso das quadras comerciais de Brasília demonstra que não é questão de recolher o lixo, é a atitude de comunidade que a gente não tem ainda. Precisamos ter um entendimento de porquê a gente não tem essa atitude”, lamenta.
Com dados do instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, a reportagem do Metrópoles informa que 102,7 milhões de brasileiros – quase metade da população brasileira, estimada pelo Censo de 2022 em 215,3 milhões – sofrem com as consequências das privações de saneamento básico. O serviço mais distante da universalização é a coleta de esgoto, ausente para 37,5% da população brasileira.
Com casos de pessoas de todo o país que têm ou tiveram suas vidas prejudicadas pela falta de saneamento básico, abastecimento de água e outros direitos fundamentais, a reportagem descreve um cenário de desolação e resiliência. Segundo sua denúncia, milhões de brasileiros têm sua formação educacional comprometida em decorrência deste flagelo. Educação que proporciona os avanços tecnológicos que poderiam minimizar os danos decorrentes de séculos de abandono, descrevendo uma condição estrutural do país.
De Altamira a Farroupilha
Em um infográfico com dados dinâmicos do IBGE, a reportagem descreve, município a município, o acesso à rede de esgoto, rede pluvial ou fossa ligada à rede; abastecimento de água por rede geral de distribuição; pessoas em domicílio com lixo coletado e pessoas com banheiro de uso exclusivo no domicílio. Selecionamos dois municípios que remetem a filmes citados no início desta matéria.
Os dados da Altamira do filme de Cacá Diegues são ainda desafiadores. Apesar de 93,26% da população terem oficialmente acesso a banheiro de uso exclusivo em domicílio e 81,93% terem domicílio com lixo coletado, segundo o Censo, apenas 44,33% reconhecem possuir abastecimento de água por rede geral de distribuição. O acesso à esgoto em rede geral, rede pluvial ou fossa ligada à rede registra 47,98% das residências do vasto município paraense (maior do país em extensão com mais 159,5 mil km2), às margens do Rio Xingu e cortado pela famosa BR-230, a rodovia Transamazônica.
Dados do Instituto Trata Brasil reforçam esses números. Mais da metade dos 117 mil habitantes (63.923) não têm acesso à água e à coleta de esgoto (66.090). Considerando um percentual maior de pessoas com coleta de resíduos domiciliares (94,88%), o município não declarou à entidade se pratica coleta seletiva de resíduos sólidos.
Considerado um berço da imigração italiana na Serra Gaúcha, a exemplo da fictícia Linha Cristal, onde o cineasta Jorge Furtado ambientou seu “Saneamento Básico, o filme”, o município de Farroupilha representa um contraponto para exemplificar como é possível melhorar os índices para o saneamento básico brasileiro. Confira os dados do município no Trata Brasil.
Farroupilha: Censo 2022 |
Esgoto em rede geral, rede pluvial ou fossa ligada à rede | 70,12% |
Pessoas com banheiro de uso exclusivo no domicílio | 99,94% |
Pessoas em domicílio com lixo coletado | 98,76% |
Abastecimento de água por rede geral de distribuição | 85,91% |
O Sistema Nacional de Informação sobre Saneamento informa que a região Sul vem ampliando seu atendimento às redes de água (84,9%, em 2010, para 91,6%, em 2022) e esgoto (34,3 para 49,7%, no período), mas também reduziu sua cobertura de coleta domiciliar de resíduos sólidos (93 para 91,9%). Corroborando a fala do pesquisador Ricardo Moretti, apesar dos avanços nesse enfrentamento, cada ponto percentual conta bastante para quem tem mais um direito social historicamente relegado no país.
Henrique Nunes
Equipe de Comunicação do Confea
Montagem de fotos: Eduarda Mafra (estagiária de Publicidade do Confea)
Agradecimentos: Casa de Cinema de Porto Alegre e Tayssa Rondon (Adcon-Confea)