Sustentabilidade agroalimentar: um choque de realidade

Palmas (TO), 19 de setembro de 2019.

“Não sei se provoquei os senhores o suficiente ou se fui pessimista demais, mas a situação exige nosso posicionamento a respeito”. Com essa afirmação, a eng. eletrotec. Lídia Manuela Duarte Santiago, segunda vice-presidente da Ordem dos Engenheiros de Portugal (OEP), encerrou, na manhã desta quinta-feira 19, sua palestra sobre o tema “Sustentabilidade Agroalimentar – De onde viemos e para onde vamos”, no terceiro e último dia da Soea.

Ao traçar um histórico da evolução da agricultura no mundo e apresentar projeções levantadas por especialistas, Lídia – que é pós-graduada em Gestão Comercial/Marketing e mestre em Ciência e Tecnologia de Alimentos pela Universidade Técnica de Lisboa – deixou claro que “provocar é preciso”, uma vez que os dados sobre a produção global de agroalimentos são alarmantes.

Engenheira Lídia Duarte: o mundo vai precisar de 60% a mais de alimentos

 

Visão histórica
Segundo seu relato, a agricultura, como é basicamente conhecida nos dias de hoje, teve seu início por volta dos anos 1800. Na década de 1920, começaram as primeiras grandes transformações na área tecnológica, em decorrência da Revolução Industrial deflagrada no século XIX, e uma delas foi a Revolução Mecânica. Com as Guerras Mundiais, entre 1918 e 1945, a tecnologia deu novo salto de qualidade e em 1960 o mundo assistiu à Revolução Verde. A partir dos anos 2000, a Revolução Digital veio para ficar, beneficiando muitas áreas da produção econômica.

Numa visão geral, indo e vindo na cronologia dos acontecimentos, a professora do Instituto Superior de Engenharia de Lisboa informou que, no século XX, os avanços tecnológicos favoreceram a produção agrícola e a criação de fármacos importantes para o setor. “Se na primeira metade do século XX nos preocupamos com a segurança alimentar, na segunda metade, o foco foi a inocuidade dos alimentos. A partir do século XXI, a preocupação é com a prevenção de doenças”, disse Lídia.

Revolução Verde
Voltando ao século passado, a palestrante falou sobre a herança da Revolução Verde dos anos 1960. “Vimos o desenvolvimento da produção intensiva e em escala, com grande reflexo na área social, ou seja, o despovoamento rural”. Segundo dados revelados em sua apresentação, em 2030 cerca de 60% das populações estarão nas cidades e, com o massivo investimento nas comunicações, valores e princípios tradicionais terão perdido muito de sua importância.

“Hoje 20% do orçamento familiar são destinados à alimentação e 80%, à busca da chamada qualidade de vida”. Tais mudanças, que transformam a sociedade num gigantesco grupo que come muito e com extrema facilidade, trouxeram à tona problemas como o desperdício, tanto na cadeia produtiva como à mesa do voraz consumidor. “Hoje temos as ‘modas’ das dietas e uma profusão de informações que levam à obesidade e às doenças”, lembrou a vice-presidente da OEP.

Degradação ambiental
A palestrante destacou outros graves problemas que afetam a sustentabilidade agroalimentar: a degradação do meio ambiente, com a contaminação do solo e das águas, o lixo e a fome. Segundo ela, as origens dessa degradação estão nas alterações climáticas (aquecimento global, ciclones, tsunamis, secas, inundações, erosão etc.) e no próprio modelo de produção intensiva (erosão, intoxicação humana e animal, degradação global dos solos e até o gado produzindo CO2). “A realidade” – mencionou a professora – “é que 820 milhões de pessoas passam fome e 2 bilhões são obesas”.

Soluções
Algumas das soluções apresentadas pelos especialistas remetem ao manuseio correto das florestas, que, entre outros produtos, fornecem caça, mel, cogumelos, flores comestíveis, pescados de água doce, azeitona, castanha, pinhão, nozes, cereja, lenha, cortiça e pasto de baixo impacto ambiental. Uma agricultura considerada de pequeno e médio porte pode fornecer ervas aromáticas, condimentos, vinhas, cereais e leguminosas, e até carnes e pescados. A engenheira especialista em Ciência e Tecnologia de Alimentos destaca que “antigamente, havia a sabedoria dos nossos antepassados que impedia de se matar porcos no verão, pela dificuldade de conservação de sua carne num mundo sem refrigeração”. “Os nômades árabes, ao perceberem o inevitável azedamento do leite em temperatura natural, criaram a coalhada, o queijo, e daí vieram o iogurte, a ricota, o requeijão. A isso se dá o nome de economia sustentável – e já era feito havia séculos”. Outro nome para esse tipo de prática, segundo a palestrante, é “economia circular”, onde se enquadra outro exemplo tradicional: o de salgar as carnes para sua conservação.

Constatação: a humanidade precisa das florestas – e vice-versa

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Como alimentar 10 bilhões em 2050?
A palestrante apontou como um dos desafios para a implantação de uma economia circular, onde ganham protagonismo a eficiência material e hídrica, o aproveitamento dos produtos hortofrutícolas. Segundo ela, é preciso pensar em todas as alternativas possíveis para alimentar – e bem – 10 bilhões de pessoas em 2050. “O mundo precisará de 60% a mais de alimentos” – adverte Lídia – “e, para isso, vamos ter de criar estruturas de desenvolvimento e inovação, produzir mais e com mais qualidade, de forma sustentável e com menos recursos, porque reduzir os níveis de CO2 já não é suficiente”.

De acordo com uma publicação científica de renome no meio – a Lancet, a necessidade de transformar hábitos e os sistemas de produção e distribuição é urgente, e a proposta de uma “dieta-padrão saudável e planetária”. “Essas propostas falam em consumir mais proteína vegetal, no lugar da animal, e consumir menos gordura saturada, carne vermelha, carne processada, açúcar”, informou Lídia em sua apresentação. A dieta alimentar Win-Win, por exemplo, inclui o consumo regular, em dosagem equilibrada, de nozes, feijão, grão-de-bico, lentilha, peixes e, em pequenas quantidades, ovos, carne e frango, além de outros grãos e laticínios.

“A humanidade precisa das florestas” – disse a engenheira – “e as florestas precisam da humanidade”. A resposta, segundo ela, é simples e inclui mudanças estratégicas na forma de se fazer agricultura: reduzir os gases do efeito estufa. “É muito complexo definir como será feito isso, mas uma coisa é certa: o mundo caminha na direção oposta” – adverte. O mundo ainda produz petróleo, carvão e gás. Na produção de carne, é científica a comprovação de que o arroto – para ficar só nessa peculiaridade fisiológica – e o estrume produzem o gás carbono que infesta a camada de ozônio”.

Refugiados climáticos
A engenheira ainda acrescenta que o mundo anda muito devagar em relação às energias renováveis e ideias da geoengenharia, como a que apregoa a instalação de painéis solares sobre os mares, são questionadas. “As ondas de calor pelo mundo afora provocam, também com comprovação científica, mais pobreza e violência. Os refugiados climáticos já são cerca de 143 milhões e ações de curto prazo contra a degradação dos solos, fator que também afasta populações inteiras, são emergenciais”.

O que é preciso implantar desde já, segundo Lídia, é a agricultura de precisão, com eficiência na aplicação de recursos e uma produção com menores impactos ambientais. O futuro, de acordo com a palestrante, está na Engenharia de Análise de Dados, e sua recomendação, em escala bastante doméstica, é o consumo de produtos locais e, em outra dimensão, a concepção de culturas não modificadas e o menor uso de pesticidas. Antes de uma provocação, a professora portuguesa Lídia Manuela Duarte Santiago apela para o inevitável choque de realidade.

Reportagem: Guilherme Monteiro (Crea-SP)
Edição: Henrique Nunes (Confea)
Revisão: Lidiane Barbosa (Confea)
Equipe de Comunicação do Confea
Fotos: Damasceno Fotografias/Confea