Brasília, 17 de abril de 2024.
Em Brazlândia, uma região administrativa rural do Distrito Federal conhecida pelas plantações de morango, desde pelo menos 1933, ou seja, cerca de 27 anos da fundação de Brasília, a telecomunicação brasileira teve seu maior investimento tecnológico até hoje. Conhecido como Parque do Rodeador, o equipamento da TV Rádio Nacional de Brasília – instalado a 60 quilômetros do Plano Piloto e inaugurado pelo presidente Emílio Garrastazu Médici às vésperas do final do seu mandato, em 1974, como um instrumento de “integração nacional” e, claro, de evidente propagada governamental – oferece ainda hoje a estrutura para a manutenção da Rádio da Amazônia, além de uma reserva para a comunicação em ondas curtas do país.
Em duas matérias que coincidem como uma homenagem aos 64 anos de Brasília, no próximo domingo (21/4), conversamos com o autor do livro recém-publicado “Entre plantações de morango, florestas e oceanos” (FAC Livros-UnB disponível para download), o jornalista Octavio Pieranti, e também com o engenheiro Higino Germani, diretor técnico da TV Rádio Nacional de Brasília, da Rádio Guaíba de Porto Alegre e da TV Educativa do Rio Grande do Sul. A primeira entrevista veremos a seguir. Autor de obras importantes para a área de comunicação, como "Políticas Públicas para Radiodifusão e Imprensa" (2006) e "Democracia e Regulação dos Meios de Comunicação de Massa" (2007), Octavio é assessor na Secretaria de Políticas Digitais da Secom/PR.
Até mesmo um avião pertencente à Agência Espacial dos Estados Unidos (Nasa) foi utilizado para transportar dois transmissores vindos da Suíça. No entanto, toda essa eficiência acabaria se confundindo com um imbróglio administrativo que chegou a comprometer o andamento das atividades logo em seguida. Projetados concomitantemente, os parques de Mamanguape, na Paraíba, e de Boa Vista jamais foram implantados. É o que veremos nas duas entrevistas, que publicaremos separadamente.
Em depoimento ao Jornal do Brasil, o atual diretor técnico do Parque do Rodeador, eng. Adriano Goetz, comentou a importância da obra para as comunicações brasileiras ainda hoje. Atualmente, o Rodeador reúne quatro conjuntos de antenas (três com torres para transmissão em ondas curtas e um para ondas médias). Goetz destaca a segurança proporcionada pelo local escolhido para a irradiação para a Amazônia, uma das principais metas da empreitada. “Ainda hoje dois transmissores com 100 kilowatts (KW) são utilizados durante 18 horas na Amazônia, sendo ouvidos inclusive nos Estados Unidos e no Canadá, no período da noite”, disse. Agora, a meta é modernizar o sistema para utilizá-lo diante da possibilidade, há muito aventada, em torno da transmissão da rádio digital no país.
Confea – Há 50 anos, ao instalar a “TV-Rádio Nacional de Brasília: Primeira etapa do Programa Nacional de Radiodifusão em Alta Potência”, como dizia a placa, ao final de seu governo, o presidente Médici buscava que o Parque do Rodeador, em Brazlândia – uma região agrária a 45 quilômetros de Brasília, até hoje conhecida sobretudo pelas plantações de morango, como destaca o título do seu livro –representasse um marco para que a comunicação governamental “integrasse” o país e o mundo pelas ondas curtas e médias da Rádio Nacional/Radiobrás. Qual foi a importância técnica e histórica desta transmissora desde então?
Octavio Pieranti – Nunca antes o Brasil havia implantado um projeto tão ousado no campo da radiodifusão. Estavam previstos nove transmissores para ondas curtas e dois para ondas médias e, na mesma licitação, foi adquirido um em FM. Juntos, eles custaram, em valores atualizados, o equivalente a R$ 500 milhões, ou seja, meio bilhão de reais. A partir daquele momento, o Parque do Rodeador tornou-se o maior do Brasil e um dos principais da América Latina. Não havia sequer mão de obra qualificada no país para uma instalação daquela magnitude e os parques de Mamanguape e de Boa Vista, previstos inicialmente, não foram implantados. Aquela emissora foi imaginada para cobrir o mundo, mas, em poucos meses, por razões políticas e econômicas, ocorreram cortes orçamentários. Com base naquela estrutura, começou a operar a Rádio Nacional da Amazônia em ondas curtas que, até hoje, transmite principalmente para as regiões Norte e Nordeste do país. Ela garante o direito à informação de segmentos da população brasileira que, residentes em pontos isolados do país, não têm acesso à outra fonte de informação. Assim, garante também a universalização da comunicação de massa. E, adicionalmente, o Parque do Rodeador é considerado infraestrutura crítica de telecomunicações, porque a partir dele o governo federal conseguiria transmitir para uma dada região do país, caso todas as outras redes de telecomunicações e o acesso à internet falhassem.
Confea – Em meio a toda a urgência de Médici para inaugurar o serviço e promover sua propaganda, o livro apresenta o papel dos engenheiros brasileiros, desde a comissão de licitação para a contratação dos equipamentos, por meio de empréstimos, até a escolha do terreno para a sua instalação na então fazenda Rodeador. No entanto, até setembro do ano anterior, “não havia qualquer definição quanto às frequências para o funcionamento das estações, nem tampouco aprovação para quelas entrassem em operação”. O que mais o marcou em relação a esse processo turbulento que se somou à crise da emissora, constatada pelo menos desde o início daquela década?
Octavio Pieranti – Foi um processo marcado pela ousadia e que, no presente, não teria sido concluído em tão pouco tempo. O planejamento foi, no mínimo, temerário. Os custos de instalação e operacional da emissora e do Parque do Rodeador eram muito superiores ao comportado pelo orçamento da empresa TV Rádio Nacional de Brasília. O apoio político que sustentou essa empreitada decorria de um governo quase no fim. Frequências para operação foram buscadas manualmente, em grandes compêndios técnicos de radiodifusão. Os parâmetros técnicos dos equipamentos a serem adquiridos foram modificados no meio do processo licitatório. O Ministério das Comunicações sequer expediu toda a documentação necessária ao funcionamento da emissora. Mesmo assim, a emissora e o parque entraram em operação no prazo estimado. E hoje essa estrutura, com número bem menor de transmissores em atividade, é fundamental para garantir o direito à informação de toda sociedade em um contexto democrático, bem diferente daquele momento.
Confea – Há também referências à atuação junto à Radiobrás, lidando com dificuldades estruturais. Nesse momento, Toshihiro Kanagae, Higino Germani, Ismar do Vale Júnior e Rômulo Villar Furtado foram alguns dos engenheiros responsáveis pela Rádio. Fale do papel destes profissionais para atividades que ainda hoje permanecem importantes para a comunicação pública brasileira.
Octavio Pieranti – Higino Germani foi o diretor técnico daquela iniciativa; em suma, foi ele que, mesmo sem contar com mão de obra qualificada, comandou a equipe que colocou no ar aquela estrutura. Ismar do Vale Júnior foi um dos responsáveis pela instalação da rede local de emissoras de rádio e TV da Radiobrás na Amazônia, já na década de 1980. Essa rede foi fundamental para garantir o acesso a meios de comunicação locais pela população residente na região, em uma época em que a radiodifusão ainda era pouco desenvolvida ali. Depois, mais recentemente, Ismar coordenou o Parque do Rodeador por muitos anos. Toshihiro Kanagae desempenhou diversas atividades na emissora ao longo da sua história, quase até o seu falecimento.
Confea – Na obra, o senhor descreve o contexto histórico que levou à complementaridade dos sistemas público, privado e estatal de comunicação, definida pela Constituição de 1988. Isso levou à criação de novos canais e da Empresa Brasil de Comunicação (EBC). Qual seria a contribuição da engenharia para garantir a efetividade desse processo? Explique o papel da comunicação pública para o país.
Octavio Pieranti – A comunicação pública difere da privada e da estatal, devendo buscar independência editorial em relação a governos e ao mercado. Hoje ela é representada, no nível federal, por emissoras vinculadas à EBC (TV Brasil, rádios Nacional e MEC) e, no nível estadual, por diversas outras estações. Muitas vezes, a citação à comunicação pública acaba compreendendo também outras emissoras que seriam mais identificadas com o sistema estatal previsto na Constituição Federal. A engenharia é fundamental para implantar e operar essas emissoras, bem como garantir uma expansão célere das redes. Vale lembrar que a Rede Nacional de Comunicação Pública (RNCP), coordenada pela EBC, está em um momento de grande expansão a partir da assinatura recente de parcerias com 60 universidades públicas e institutos federais que têm a expectativa de operar mais de 150 novas estações.
Confea – Saindo do contexto do livro para a sua atuação como pesquisador da área, como está o processo de digitalização da TV brasileira, praticamente concluído desde o segundo governo do presidente Lula e que não se falou muito nos últimos anos? Qual a contribuição dos engenheiros brasileiros também para esse processo?
Octavio Pieranti – As regras foram definidas nos governos Lula e Dilma, quando começou a ser implementado o desligamento da TV analógica em cada município. Desde então, isso vem sendo feito e restam emissoras de TV analógicas apenas em municípios muito pequenos. Esse processo vem sendo tratado como caso de sucesso no plano internacional, abordado, por exemplo, em relatórios da UIT. Também sugiro consultar o site do Ministério das Comunicações para mais informações. Na Anatel, os engenheiros foram fundamentais para concluir o processo de gestão de espectro, permitindo a convivência de emissoras analógicas e digitais por longos períodos (período de transmissão simultânea ou simulcasting). Além disso, no âmbito privado, foram importantes para a instalação e operação das novas estações.
Confea – A engenharia brasileira realiza a manutenção e a modernização das mais diversas empresas públicas e privadas de comunicação no país. Qual a importância de, ao lado do jornalismo profissional, reconhecer essa atuação para que a comunicação possa cumprir seu papel de valorizar o conhecimento científico e voltado para o avanço da cidadania do país em tempos de Fake News?
Octavio Pieranti – A consolidação de um ambiente de integridade da informação e consequentemente o combate à desinformação passam pelo fomento e pela valorização do jornalismo profissional. Engenheiros são importantes para isso ao desempenhar atividades essenciais ao funcionamento dos meios de comunicação.
Confea – Qual a importância do jornalismo científico para a sociedade e qual o seu papel no cenário da comunicação pública brasileira?
Octavio Pieranti – O jornalismo científico é importante tanto ao promover a divulgação de pesquisas realizadas no Brasil, quanto ao oferecer base de conhecimento sólida para a abordagem dos mais diversos temas. Instituições de ensino superior são fundamentais para o jornalismo científico e, nesse sentido, é importante destacar que havia uma demanda reprimida grande delas pela operação de novas emissoras de radiodifusão. O Estado brasileiro tem trabalhado no sentido de atender essa demanda e simultaneamente promover a expansão da Rede Nacional de Comunicação Pública (RNCP) a partir de parcerias celebradas entre a Empresa Brasil de Comunicação (EBC), universidades públicas e institutos federais. Foram celebradas parcerias com 60 instituições de ensino superior, que pretendem operar mais de 150 novas estações. Em outubro de 2023, havia 109 emissoras na rede. Portanto, caso todas as novas estações sejam implantadas, a rede pública será dobrada e a rede pública de rádios, em específico, será triplicada.
Henrique Nunes
Equipe de Comunicação do Confea
Fotos: Divulgação/Octavio Pieranti e Reprodução/Acervo Higino Germani