Brasília, 17 de abril de 2024.
A importância do rádio para o país ao início da década de 1970 justificaria a valorização dimensionada pelo governo brasileiro ao projeto Rodeador, que daria voz e imagem à TV Rádio Nacional de Brasília. Desenvolvido na atualmente denominada região administrativa de Brazlândia, no Distrito Federal, o projeto foi marcado por desafios extremos, tanto para a engenharia como para sua gestão. “O problema maior estava na origem: como o ministério da Fazenda aprovou um projeto de radiodifusão de US$ 15 milhões sem um parecer (ou aprovação formal) do ministério das Comunicações?”, comenta o diretor técnico do projeto, o engenheiro Higino Ítalo Germani. Em entrevista concedida por e-mail, ele explica os principais méritos e desafios da empreitada, além de sua permanência para a radiodifusão brasileira, 50 anos depois.
Confea – O senhor trabalhava no Departamento Nacional de Telecomunicações (Dentel) quando foi convidado a coordenar a área de planejamento e elaboração de projetos do grupo de trabalho para o Projeto Rodeador, criado em setembro de 1973, poucos meses antes da inauguração dos transmissores. A duras penas, foi possível implantar o Parque em março de 1974, às vésperas da conclusão do mandato de Médici. Houve problemas, desde o uso da mesma frequência utilizada pela Rádio Nacional do Rio de Janeiro. Quais foram os principais desafios daquela empreitada, além dos imbróglios administrativos?
Eng. Higino Germani – Na realidade, estava no Dentel e recebi uma visita de dirigente da Rádio Nacional de Brasília me relatando a dimensão do projeto o que, de imediato, me despertou interesse. Acabei me reunindo com o superintendente, o qual me relatou que tinha que, com urgência, definir o local do sistema de transmissão de alta potência. Respondi que poderia fazê-lo, mas dependia de uma autorização da Direção Geral do Dentel. Como se tratava de uma empresa do governo, o diretor geral não viu óbice algum; terminava meu expediente no Dentel e ia para a TVRNB. Em poucos dias, definimos três áreas, levando em conta a proteção dos aeródromos, outros serviços de telecomunicações e a topografia. Depois de visitar as opções selecionadas, a escolha recaiu sobre o Rodeador.
Confea – Quais foram as principais dificuldades na implementação do projeto técnico?
Eng. Higino Germani – Na realidade, não houve falhas graves. No estágio em que assumi a direção técnica, o edital de concorrência internacional já havia sido publicado e uma comissão constituída para julgamento das propostas. Nunca soube quem foi o autor do projeto básico pois nunca vi um memorial descritivo do mesmo (desconfio que foi feito pelo IME – Instituto Militar de Engenharia, mas nada tenho para comprovar isto). O sistema de ondas curtas foi muito bem planejado (com exceção das estações relés de Mamanguape e Boa Vista que não chegaram a ser instaladas). A única alteração que consegui fazer no projeto foi a expansão da banda de operação dos transmissores de Ondas Curtas para trabalharem na faixa de 60 m de Onda Tropical. Isto viabilizou uma estação de OT 60 m em Manaus, décadas depois. Cabe grande questionamento à estação de Ondas Médias de 600 KW, tendo em vista a baixa condutividade do solo da região (cobertura diurna) e a frequência de operação (mesma da Rádio Nacional do Rio de Janeiro) e com características ruins em termos de reflexão ionosférica (cobertura noturna). Cheguei a fazer comentários a respeito (que não se devia esperar “milagres” da Onda Média), mas ouvi que havia sido contratado para instalar o sistema e não para julgá-lo... Depois, diante dos resultados insatisfatórios em termos de cobertura da Onda Média, solicitaram que fizesse um relatório para pressionar a Brow Boveri, no que me recusei.
Confea – Fale um pouco da sua experiência como engenheiro eletrônico até chegar àquele momento.
Eng. Higino Germani – Sempre me senti atraído pela Radiodifusão. Desde os 14 anos que montava protótipos. Durante a faculdade fiz três estágios. Logo após a formatura, vim para Brasília para (supostamente) aprender com profissionais experientes. Não existiam! A Telebrás estava para ser criada e atraía todas as atenções dos engenheiros. O Rádio e a TV ficaram um tanto abandonados, envoltos em uma enorme burocracia e sob o domínio dos advogados. Sob o aspecto profissional, foi mais arriscado e difícil assumir a área de engenharia de Radiodifusão do Dentel do que a Rádio Nacional.
Confea – O senhor também foi diretor técnico da TVRNB até 1975. Quais foram as principais conquistas da emissora, que seria assumida naquele mesmo ano pela holding Radiobrás, e os seus principais erros para a sua atuação no contexto da comunicação de governo dos anos 1970 e 1980?
Eng. Higino Germani – Quando me deparei com a oportunidade de instalar os (ainda) maiores transmissores de OM e OC da América do Sul, tinha que aceitar o desafio, pois jamais surgiria outra oportunidade como aquela. Fazendo um retrospecto, até que não fizemos grandes burradas (apesar do constante atropelo). O trabalho mais demorado e difícil foi selecionar frequências nas faixas de Ondas Curtas de 49, 31 e 25 m para transmitir para a Europa. Não se poderia jogar cerca de 20 MW (megawatts) efetivos no ar, gerando interferências e problemas de toda ordem... Com relação aos aspectos políticos, veja que sucessivos governos nunca souberam realmente planejar um sistema de Rádio e TV que representasse o país interna e externamente. Vejamos a sequência: Rádio Nacional do Rio de Janeiro, TV Rádio Nacional de Brasília, Radiobrás, EBC. Além disto, várias outras estações do MEC, Universidades, TV’s Educativas, Fundação Roquette Pinto, TV Cultura de São Paulo, canais do Senado e Câmara Federal, e muitos outros órgãos. Sucessivos governos preocupados com o “Serviço” em si e não com o “conteúdo”. Enquanto isto, milhares de estações privadas transmitem música o dia todo na falta do que pôr no ar...
Confea – Como o senhor qualifica o empenho do presidente Médici em concluir as obras nesse prazo, a despeito de uma maior organização financeira que redundaria em dívidas, cortes e demissões alguns meses depois?
Eng. Higino Germani – Aparentemente, existia um conflito entre o ministro das Comunicações e a assessoria da área de comunicações de Médici. Procurei não me envolver com este aspecto, mesmo porque não havia tempo para nada. Como o Ministério estava voltado para a criação da Telebrás, a Radiodifusão ficou em segundo plano e a assessoria de comunicação do Palácio meio que assumiu a tarefa. Não creio que a opção de colocar a primeira etapa do sistema tenha sido decisão pessoal de Médici. O mais provável é que desejavam tornar o projeto irreversível. A ideia de criação da Radiobrás era disputada pelos dois grupos. Quem conhece o meio militar sabe que prezam muito a ordem hierárquica: um general – presidente jamais iria passar por cima de um coronel – ministro. A tentativa do grupo palaciano em criar a Radiobrás à revelia do ministério das Comunicações estava fadada ao fracasso desde o início. Depois de instalada a primeira etapa e com a mudança de governo, tentamos atuar como “algodão entre cristais” e fomos mal interpretados, no que resultou nossa saída do projeto. Após tanto esforço, ver a equipe se desmantelando e os transmissores chegando e sendo colocados em depósitos foi o meu limite.
Confea – A burocracia entre a TVRNB e o ministério das Comunicações gerou muitas dificuldades logo no início das atividades. Quais foram os principais desafios para a manutenção da TVRNB tendo apenas oito engenheiros?
Eng. Higino Germani – Na realidade, o ministério das Comunicações não gerou nenhum entrave ao projeto. Simplesmente não examinou os projetos. Mas não impediu a implantação e inauguração (poderia ter feito isto). O problema maior estava na origem: como o ministério da Fazenda aprovou um projeto de radiodifusão de US$ 15 milhões sem um parecer (ou aprovação formal) do ministério das Comunicações? Procurei manter minha equipe afastada destas questões políticas. Nos concentramos em colocar no ar a primeira etapa.
Confea – A operação em ondas curtas exigia uma logística arrojada. Fale um pouco dessa estrutura que logo permitiu uma audiência de 600 mil ouvintes na Europa, apesar das dificuldades financeiras para manter uma programação regular.
Eng. Higino Germani – Com apenas um transmissor de Ondas Curtas de 250 KW conectado a uma antena rômbica provisória (que resultava em potência efetiva da ordem de 20 Megawatts), chegamos a transmitir em seis idiomas para a Europa (uma hora de português, uma hora de alemão, uma hora de francês, uma hora de inglês, uma hora de espanhol e uma hora de italiano). A equipe do Serviço Internacional abrangia cerca de 100 profissionais. Mudou o governo e foi tudo desativado... Isto é um problema crônico no Brasil: a descontinuidade administrativa. Como as condições de propagação mudam com o passar das horas, era necessário mudar, por exemplo, da faixa de 31 m para a de 25 m. A equipe atingiu um tal grau de especialização que fazia a troca de frequência e o ajuste do transmissor em menos de um minuto e a estação voltava ao ar com programação em outro idioma. E tudo isto com um único transmissor! É digno de nota também o fato de terem optado por transmitir para a Europa e não, por exemplo, para a Amazônia.
Confea – Como o senhor define a importância do Projeto do Rodeador para as comunicações do país? Quais foram os principais avanços proporcionados por essa experiência e sua continuidade nos dias de hoje?
Eng. Higino Germani – Estive recentemente no Rodeador e constatei que um grupo de abnegados mantém as instalações em boas condições. O conjunto de antenas de ondas curtas é o bem mais importante que pode prestar ainda muitos serviços, tanto para o interior do país (Amazônia), como para quase o mundo todo. Com a possibilidade de digitalização dos sinais de OC, não é mais necessário se falar em altas potências. A proporção entre a potência necessária para uma transmissão analógica e uma digital é de 10:1, ou seja, se antes era necessário 100 KW analógico para dar cobertura a uma determinada área, hoje se faz o mesmo com 10 KW digital. O Brasil possui uma faixa chamada de Ondas Tropicais que podem ser utilizadas do Trópico de Capricórnio para cima (o Trópico passa pouco acima da cidade de São Paulo). Existem três faixas: 120 m, 90 m e 60 m. Para a cobertura de grandes áreas a faixa de 60 m é a ideal, tanto de dia, como no período noturno. Fizemos uma projeção de que um conjunto de cerca de 18 estações de OT de 60 m com potências de 5 a 10 KW digitais proporcionariam a cobertura de toda a Amazônia. Restaria criar estímulos e incentivos fiscais para a produção de receptores de OT/OC digitais, de custo acessível (alimentados por pilhas comuns ou recarregáveis - a painel solar ou a corda). O meio “Rádio” ainda pode dar muitas contribuições ao país, seja disseminando “informação” como “aculturação”. A Radiodifusão está se transformando em Radio-Informação.
Henrique Nunes
Equipe de Comunicação do Confea
Fotos: Reprodução/Acervo Higino Germani
Montagem de fotos: Eduarda Mafra (Estagiária de Publicidade do Confea)