Brasília, 12 de março de 2024.
Ativista ambiental brasileira, a geógrafa Ane Alencar é a primeira pesquisadora da América Latina a figurar o Leading Women in Machine Learning for Earth Observation (Mulheres Líderes em Aprendizado de Máquina para Observação da Terra, em português), organizado pela Radiant Earth Foundation.
Formada pela Universidade Federal do Pará (UFPA), Ane tem mestrado em Sensoriamento Remoto e Sistema de Informação Geográfica pela Universidade de Boston e doutorado em Recursos Florestais e Conservação pela Universidade da Flórida. Atualmente, ocupa a Diretoria de Ciência do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), cuja missão é promover educação e inovação para uma Amazônia e um Cerrado ambientalmente saudáveis, economicamente prósperos e socialmente justos.
Em entrevista ao site do Confea neste Mês da Mulher, Ane compartilhou momentos sobre sua jornada, desde os primeiros dias de fascinação por mapas até as conquistas marcantes, incluindo a coordenação de iniciativas para monitorar desmatamento, estoque e perda de carbono florestal. Ao explicar seus estudos sobre fogo, uso da terra e mudanças climáticas, a pesquisadora lançou luz sobre o papel fundamental dos profissionais da geografia na construção de um futuro mais sustentável.
Na conversa, Ane também revelou sua perspectiva sobre equidade de gênero nas ciências ambientais, incentivando outras cientistas a firmarem posição e combaterem a violência contra as mulheres. “No meio científico, principalmente no ramo que é predominantemente masculino, a gente tem que falar várias vezes para ser ouvida”, comentou a geógrafa que acredita na pluralidade como solução. “A gente ganha muito quando tem um grupo diverso porque é a partir da diversidade de opiniões que a ciência se move.”
Conheça essa trajetória de descobertas extraordinárias e de compromisso com a ampliação de oportunidades para mulheres no ramo da ciência:
Confea: Como foi seu encantamento pela geografia?
Ane Alencar: Eu sempre gostei muito de mapas, de contemplar paisagens e de entender porque as coisas se formavam do jeito que se formavam. Eu também tive uma professora no primeiro grau que fazia a gente viajar, ela nos transportava para os lugares e nos fazia entender os processos. Eu era louca por rochas e fazia coleção delas. Então, tudo que girava em torno da geografia física, principalmente, me encantava muito. Foram essas coisas que me fizeram apaixonar pela geografia.
Confea: Seu engajamento ativista foi despertado pela ciência?
Ane Alencar: Sempre tive uma vontade muito grande de aprender e, quando entrei na universidade, fiz diversos tipos de estágio nas áreas de meteorologia, pedologia, geografia urbana, sensoriamento remoto, manejo de bacias. Isso me abriu a cabeça de um jeito e eu comecei a entender que o ser humano e suas atividades tinham um papel muito forte na transformação do espaço geográfico. Isso passou a ser o cerne da geografia para mim. Então, fui me apaixonando cada vez mais por esse outro lado da geografia. Isso me trouxe também para a área mais ambiental e comecei a trabalhar numa organização não governamental, uma ONG, o que me fez ir para um lado da ciência-ação, vamos dizer assim. Fazer ciência numa perspectiva de que o que você produz possa ser usado para construção de uma política pública ou possa ser usado como crítica ou sugestão é realmente algo que me anima muito. Então, eu diria que a ciência veio primeiro.
Confea: Nessa trajetória profissional e de ativismo, o que levou você a estudar o comportamento do fogo?
Ane Alencar: Foi algo interessante, eu ainda estava na faculdade e fiz estágio na Embrapa, em um projeto conjunto com uma instituição americana. Eles tinham como principal objetivo entender se a Amazônia tinha ou não enraizamento profundo e qual o impacto disso no ciclo hidrológico. Fiquei fascinada com aquilo e comecei a mexer nas imagens de satélite. Fui ficando ainda mais apaixonada porque eu já gostava de mapas, eu já tinha esse olhar geográfico sobre as coisas. Poder ver um território de cima, entendendo todas as dimensões que ali existiam, e poder ver isso ao longo do tempo, utilizando as imagens de satélite, me fascinou demais. Na época, comecei a olhar as imagens de satélite de Paragominas, município do Pará, e vi umas manchas diferentes no meio da floresta e achei aquilo interessante. Comecei a mapear e vi que elas não tinham um padrão que se repetia no mesmo lugar, mas que elas mudavam dependendo do ano da imagem. Eu comecei a mapear aquilo e mostrei para meu chefe e orientador e ele falou: “Olha, eu acho que é fogo”. Eu perguntei: “Mas fogo em floresta úmida?”. Aí a gente foi a campo e realmente verificou que era fogo e isso me fez atentar para muitas coisas. Eu quis saber como, quando e porque queimava. Foi aí que eu entrei nesse mundo para tentar entender porque as florestas úmidas da Amazônia, que não deveriam queimar, estavam queimando.
Confea: Sua dedicação ao tema é tão expressiva que você inclusive é conhecida por ter cunhado a expressão “cicatrizes de fogo”. Explique o que elas são exatamente.
Ane Alencar: No mapeamento de imagens de satélite, eu vi que as áreas de floresta queimada, que a gente chama de fogo de sub-bosque, pareciam uma cicatriz. E, assim, o nome “cicatrizes de fogo” ou “burn scars” pegou.
Confea: No início dos anos 2000 e depois em 2010 você alertou a sociedade para um cenário novo de incêndios naturais na Amazônia. Fale um pouco sobre sua descoberta durante o mestrado e doutorado.
Ane Alencar: Então, a pergunta que me perseguia era: por que as florestas úmidas da Amazônia, que não deveriam queimar, estavam queimando? E o quanto elas estavam queimando e o quanto disso seria decorrente das mudanças do uso da terra e o quanto disso seria decorrente das mudanças climáticas? Na década de 2000 eu resolvi fazer doutorado nessa temática; eu já tinha feito mestrado na área de sensoriamento remoto, na Universidade de Boston. A coisa mais interessante do meu doutorado é por ele ser um dos primeiros trabalhos que demonstra que as florestas da Amazônia estavam tendo mudança no regime natural de fogo. Áreas que deveriam queimar de forma natural entre 200 e 1000 anos, dependendo do tipo de floresta e condição climática, estavam queimando a cada 12 anos. Esse estudo demonstrou que várias áreas da Amazônia estavam colapsando, em processo de degradação por causa do fogo.
Confea: Você tem fascínio por mapas! Conte, então, sobre sua realização profissional em coordenar as plataformas MapBiomas para o Cerrado e MapBiomas Fogo, no Ipam.
Ane Alencar: Eu realmente tenho fascínio por mapas e foi um prazer quando fui convidada a fazer parte da equipe do MapBiomas, coordenando não só o mapeamento da vegetação nativa do Cerrado, como também o mapeamento das cicatrizes de fogo do Brasil. Hoje eu coordeno a equipe que realiza mapeamento em dois biomas: na Amazônia e no Cerrado. Eu ganho meu dia quando estou analisando esses dados e conversando com as pessoas sobre isso porque estou juntando as duas coisas: a questão do mapeamento e da interpretação da paisagem do Cerrado, junto com a questão do fogo tanto no Cerrado quanto na Amazônia. É a realização de um grande sonho, porque desde a primeira imagem de satélite, eu quis gerar uma base de dados temporal sobre cicatrizes de fogo, e o MapBiomas me permitiu fazer isso.
Confea: Durante sua participação na Conferência das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima, a COP 28, em Dubai, no ano passado, você disse que “as mudanças de uso da terra no Cerrado são o tópico mais importante no Brasil”. O que essa afirmativa significa?
Ane Alencar: O Cerrado é um bioma estratégico e importante para o Brasil, pois está no centro, é o segundo maior bioma do país e tem uma função ambiental que é ser um grande provedor de água para várias bacias brasileiras importantes, como o São Francisco. O Cerrado está sendo desmatado numa velocidade muito alta e mais da metade já está devastada. Por isso, a preocupação é grande.
As taxas de desmatamento no Cerrado são superiores às da Amazônia, sendo o Cerrado um bioma duas vezes menor.
Confea: E qual sua análise sobre o desmatamento na Amazônia?
Ane Alencar: Na década de 1990, tivemos taxa de desmatamento entre 25 e 30 mil km²/ano. Também tivemos altas taxas no início dos anos 2000. Depois disso, tivemos uma série de políticas públicas que foram colocadas em prática para reduzir o desmatamento. Conseguimos uma marca histórica de redução do desmatamento, entre 2004 e 2012, de aproximadamente 80%. Isso foi uma vitória e demonstrou que, quando o governo está engajado, consegue realmente reduzir o desmatamento. Essas taxas voltaram a crescer no final da década passada, com aumento rápido, passando de 10 mil km²/ano. Isso gerou uma preocupação: se as taxas voltariam a chegar aos níveis da década de 1990. Com esse novo governo, a gente viu que, mesmo usando a receita do passado, conseguiu reduzir o desmatamento em quase metade em 2023 em relação a 2022. Isso é uma vitória muito grande e é um compromisso com o Brasil e com o mundo. Isso porque, no Brasil, 49% das emissões de gás de efeito estufa estão relacionadas à mudança do uso da terra, caracterizada pela conversão de área de floresta para não floresta, ou seja, desmatamento. Por isso, é fundamental combater o desmatamento na Amazônia. Assim, a gente reduz a nossa principal fonte de emissão de gás de efeito estufa, contribuindo para mitigação do aquecimento global e das mudanças climáticas.
Confea: Qual a importância dos profissionais da geografia neste cenário que demanda esforços e revisão da maneira como nos relacionamos com o meio ambiente para, assim, minimizar os riscos de grandes catástrofes como seca e ondas de calor extremo?
Ane Alencar: O geógrafo é um profissional muito necessário porque ele entende como o ser humano transforma o ambiente e produz o espaço geográfico. Esse entendimento é fundamental para que mudanças de comportamento possam acontecer. Além disso, ele faz a leitura do espaço geográfico por sensoriamento remoto, cartografia, geoprocessamento, e interpreta o resultado das análises. O geógrafo é fundamental para ajudar a entender esses processos de mudanças e para ajudar também a propor soluções para que a gente gere menos impactos no planeta.
Confea: Considerando a sua carreira em uma área predominantemente masculina, como você percebe a questão da equidade de gênero neste contexto?
Ane Alencar: Acho que na geografia e nas ciências ambientais tem, cada vez mais, mulheres. Mas no meu tempo realmente eu era uma das poucas e uma das poucas do Norte. Então foram várias limitações e barreiras que a gente enfrentou principalmente na década de 1990. Hoje, quando contrato pessoas eu tento equilibrar as coisas e dar oportunidades independentemente do gênero, sempre prestando atenção nas questões sociais. A gente ganha muito quando tem um grupo diverso porque é a partir da diversidade de opiniões que a ciência se move.
Confea: Quais foram os principais desafios que você enfrentou como mulher na sua área de atuação, houve alguma situação de preconceito? E como superou essas adversidades?
Ane Alencar: No meio científico, principalmente no ramo que é predominantemente masculino, a gente tem que falar várias vezes para ser ouvida. Ou a gente tem que ouvir o colega repetir o que a gente falou para, então, as outras pessoas dizerem que concordam. Por um tempo, isso foi normalizado por mim, parecia regra. Mas depois eu comecei a me posicionar. Comigo aconteceu uma história curiosa. Fui convidada para participar de uma reunião e falar sobre análises interessantes que eu tinha feito sobre desmatamento em terras públicas. Na parte de baixo do gráfico que eu estava apresentando estava escrito “ALENCAR et al.” Ao final, um homem disse: “Muito bom, legal; mas eu queria falar com Alencar”. Eu olhei e quase não acreditei. Daí eu falei: “Eu sou Alencar. Meu nome é Ane Alencar”. Então, eu acho que as mulheres que chegam a uma determinada posição têm que prestar mais atenção nessas coisas e se colocarem mais. A gente tem tudo para mudar isso e eu espero que isso mude mesmo.
Cada vez que a gente se posiciona, mais a gente tem chance de fazer com que nossos colegas comecem a perceber essa questão histórica do preconceito contra mulheres.
Confea: Você é a primeira pesquisadora latino-americana premiada pelo Leading Women in Machine Learning for Earth Observation, organizado pela Radiant Earth Foundation. Qual a importância dessa premiação para você e para a comunidade científica da região? Como você espera que seu prêmio recebido em 2022 inspire outras mulheres, especialmente aquelas que estão começando a carreira na ciência e na área de observação da Terra?
Ane Alencar: Foi um reconhecimento importante para mim e para minha carreira. Espero que, com esse prêmio, eu também inspire várias outras mulheres nesta área que é muito dinâmica e muda o tempo inteiro, mas é muito fascinante. Para terminar, eu queria dizer que é muito importante as pessoas fazerem o que elas gostam porque elas sempre vão ter seu lugar. Eu sou a prova disso, eu sempre fui atrás de aprender e sempre fiz o que eu gosto. Então, o reconhecimento vem.
Julianna Curado
Equipe de Comunicação do Confea, com informações do Ipam Amazônia
Fotos: Arquivo pessoal