USP inaugura estação inédita para produzir hidrogênio a partir do etanol

Brasília, 10 de março de 2025.


Apesar de atualmente não representar uma alternativa viável economicamente à gasolina nos postos de gasolina do país, o etanol – biocombustível derivado da cana de açúcar, adotado pela indústria automobilística brasileira desde a década de 1970 – continua sendo valorizado diante da busca por soluções energéticas que façam frente aos combustíveis fósseis, em tempos de crise climática. Se depender de um grupo de pesquisadores da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (EPUSP), a maioria engenheiros, o etanol poderá ter sua utilização ampliada, desde a sua produção a seu uso em veículos, sobretudo pesados, por sua transformação em hidrogênio verde. A primeira usina do mundo a realizar esse tipo de conversão acaba de ser inaugurada pela USP, iniciando sua operacionalização a partir do início deste mês de março.

Promovida por um consócio que integra a Universidade à Shell, à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e a outras empresas do setor, a pesquisa vem sendo conduzida pela EPUSP, por meio de uma equipe multiprofissional. Ao longo de 12 anos, a estação recém-inaugurada recebeu investimentos de R$ 50 milhões da startup Hytron e ainda da Raízen, Toyota, Hyundai, Marcopolo, da Empresa Metropolitana de Transportes urbanos de São Paulo (EMTU) e do Senai CETIQT.

Usina de conversão de etanol para hidrogênio, implantada na Politécnica da USP
Usina de conversão de etanol para hidrogênio, implantada na Politécnica da USP



Com a nova técnica, o projeto pretende gerar 100 quilos de hidrogênio/dia, a serem utilizados em veículos elétricos da própria universidade. “Poderemos chegar a uma pegada de carbono negativa, por meio da utilização do hidrogênio nas próprias usinas de álcool hidratado, mesmo que isso demande uma transição, utilizando ainda os motores de combustão atuais. O mesmo poderá ser feito nos veículos de motor a combustão atuais, embora aí também possa comprometer a eficiência desse aproveitamento”, prevê o vice-diretor do Centro de Pesquisa e Inovação em Gases de Feito Estufa (RCGI, na sigla em inglês), eng. mec. Emílio Carlos Nelli Silva, em entrevista o Confea.

A usina inédita no mundo utiliza uma tecnologia termoquímica para converter o etanol em hidrogênio, diferenciada das que utilizam a eletrólise e o metano, estabelecidas na Ásia, nos Estados Unidos e na Europa. “O hidrogênio gerado é armazenado e disponibilizado em um posto de abastecimento para veículos”. Nos próximos 10 meses, será analisado o funcionamento dos “reformadores”, com uma escala de produção de 100 quilos de hidrogênio por dia. A partir daí, a meta será implantar uma fábrica capaz de produzir 45,5 Kg de hidrogênio por hora. Dois carros e três ônibus incorporados pela USP serão utilizados nos testes para avaliar a taxa de conversão de etanol em hidrogênio e os índices de consumo e rendimento do combustível nos veículos.

“Essa planta piloto, única no mundo vai nos ajudar a avaliar a confiabilidade desta tecnologia. Muito do que se tem atualmente, vem de cálculos teórico-numéricos e laboratórios. Agora, temos uma usina onde poderemos ver se todos estes números se confirmam. Esta será a primeira vez que o hidrogênio será avaliado nas condições brasileiras”, argumenta Emílio. Ele informa que o RCGI reúne 600 pesquisadores de várias unidades da USP. “Para mim é um orgulho fazer parte disso. A grande vantagem é que a gente consegue disponibilizar para a sociedade a tecnologia. Esse caminho das pedras a gente conseguiu encontrar. Gerar conhecimento que chegue à sociedade. Tudo o que a gente faz tem que ser com essa motivação. Custos, confiabilidade, para que isso seja escalado para uma planta industrial. Aí a universidade já não entra, seria algo da empresa, para dar escala”, acrescenta. 

Vantagens da tecnologia
Disponível em mercados da Ásia, Europa e Estados Unidos, inclusive com autonomia de 600 quilômetros, os veículos que utilizam células de hidrogênio ainda parecem longe da realidade brasileira. Investimentos para a produção do hidrogênio vêm sendo feitos em estados como o Ceará, onde está o maior projeto de hidrogênio verde em larga escala do país. Agora, a pesquisa da USP pode representar um passo inovador para a adoção dessa tecnologia no país.

Por utilizar um processo eletroquímico nas células de combustível, o uso mais eficiente está relacionado aos modelos novos de veículos com tanques já preparados para receber o hidrogênio. “Não tem uma indústria no Brasil disponível. Isso vai começar com caminhões e ônibus que têm maior valor agregado. O ideal não é queimar hidrogênio em motor de combustão. Mas, em uma fase de transição, talvez isso vá ocorrer, o que já reduz a descarbonização. A eficiência da nova tecnologia usa uma célula de combustível, tanques de hidrogênio e uma bateria menor com a geração da própria energia. Lá fora não é mais uma tecnologia embrionária”, ressalta.

Segundo o engenheiro mecânico Emílio Carlos Nelli, os carros a combustão possuem uma eficiência termodinâmica da ordem de 35%. Isso significa que somente cerca de 35% da energia presente no combustível é utilizada para mover o carro, informa. “O etanol é renovável porque retorna pela fotossíntese da cana, mas não pode ser usado em caminhões e ônibus. O hidrogênio usado na célula de combustível tem 70% de eficiência, podendo ser utilizado nesses veículos. O hidrogênio por eletrólise gasta 55 kilowatts/hora por quilo, trata-se de uma alta quantidade de energia elétrica. O processo do gás metano exige que o metano ou o hidrogênio seja transportado, o que é ineficiente. Já o processo por etanol exige 2kwh/Kg de hidrogênio (energia que pode ser obtida do próprio etanol) e tem a vantagem logística do transporte do etanol, que é liquido”. O pesquisador considera ainda que seria possível promover também a combinação do hidrogênio com gás carbônico, para gerar o metanol; e com nitrogênio, para a produção de amônia, utilizada em fertilizantes. 

 

Tecnologia poderá ter uso em outras indústrias


Pesquisas em torno do futuro sustentável por meio das energias limpas apontam que o hidrogênio verde poderá ter seu uso disseminado em indústrias diversas, da mineração à petroquímica e metalúrgica, incluindo ainda a siderúrgica e a de fertilizantes. A substituição do gás natural nesses processos é uma das expectativas. 

Mas haverá usos mais prosaicos. A Empresa de Pesquisa Energética (EPE) estima que, entre 2021 e 2031, o setor de transporte será responsável por 32% do consumo de energia do país.  O que mais do que justifica o perfil adotado para o início das pesquisas desenvolvidas pela USP, em torno da eficiência da transformação do etanol em hidrogênio. Afinal, um dos maiores desafios para a produção do hidrogênio verde se refere ao uso de fontes sustentáveis, que supram os impactos ainda verificados com a utilização da eletrólise e das células a combustível. 

A separação das moléculas de oxigênio e hidrogênio, por eletrólise da água (geralmente de origem solar), não emite gás carbônico, liberando água e energia térmica, por meio de motores a combustão de hidrogênio. A adaptação de motores tradicionais representa outro desafio. Apesar dos cuidados exigidos para seu armazenamento, seu uso já vem sendo feito por reduzir o impacto ambiental e por sua eficiência – alta taxa de combustão.

No caso das células a combustível, há uma combinação do hidrogênio com o oxigênio, gerando energia elétrica e vapor de água. O processo final é limpo, no entanto, o problema está na construção das células, o que demanda recursos dispendiosos até que chegar à “bateria recarregável”, que transporta o combustível facilmente.


Logística favorável
Emílio explica que a logística existente no país para a produção e o transporte de etanol será um diferencial para promover uma “escalabilidade” para a produção de hidrogênio verde. “Se quiséssemos produzir na Amazônia, teríamos que gerar ou levar essa energia para lá. Outra opção seria fabricar no Sudeste e levar para a Amazônia, porém o transporte de gás é um processo ineficiente”. Já o etanol, por ser líquido, tem um transporte mais eficiente. “Temos uma estrutura de distribuição montada em todo o país. Com uma densidade energética eficiente, convertendo localmente para hidrogênio, tornaria o processo eficiente. Poderíamos ter usinas e postos em todo o país, usando a rede de distribuição do etanol. E poderíamos inclusive exportar o etanol”, sugere Emílio.

Arte: USP
Arte: USP



“Essa escalabilidade não está presente nos Estados Unidos, mas está sendo utilizada melhor na Ásia, onde os modelos de transformação por eletrólise e a partir de metano geram um custo de US$ 5 a 6 US$ por quilo de hidrogênio, algo bem abaixo das outras tecnologias. “O custo precisa atingir uma escalabilidade. Na Coréia, fazem a partir de metano, estão de 5 a 6 dólares. Na China e no Japão, que usam a eletrólise e o metano, também. A gente estima que vá conseguir menos que isso. Nos Estados Unidos, há problema de escalabilidade. Está a 36 dólares, devido à questão logística, ao fato de que eles são muito viciados em combustíveis fósseis e a outros problemas”, considera o professor do Departamento de Mecatrônica da USP.

Os investimentos nesse processo de logística poderão, pouco a pouco, incluir a própria produção de etanol, capturando o CO2 do etanol ainda nas usinas de álcool do país. “É possível também substituir o diesel por hidrogênio, fazendo a troca de todos os equipamentos por equipamentos já adaptados ao hidrogênio, mas é possível também desenvolver uma transição, começando a usar o hidrogênio no motor de combustão, embora nesse caso a eficiência seja menor”, explica Emílio Nelli. 

Nos postos de abastecimento, descreve, o armazenamento será feito em tanques de alta pressão de 450 bares (bar é a unidade de regulagem de pressão). “É criada uma zona de exclusão em torno do tanque. Em cada posto, o ideal seria que pudesse ter uma usina menor que a estação atual da USP, convertendo o etanol para hidrogênio, naquilo que chamamos de reformadores. É um sistema menor que o posto, em que o etanol é convertido em hidrogênio e o tanque abastece os carros.  O que vale a pena é ter essa conversão localmente”, ressalta.
 

Henrique Nunes
Equipe de Comunicação do Confea

Fotos: USP/Divulgação